
Eu ando à beça. Pelas vielas, pelas calçadas, pelos telhados. Às vezes sigo, a esmo, por dentro das sarjetas secas. Esfrego-me, os pelos eriçados, o lombo arqueado, em postes. Pulo por sobre muros e entro nas casas alheias. Às vezes sou recebido pelos humanos a gritos; em outras, eles me fazem carícia na barriga e me dão leite e peixe pra comer.
Eu ando à beça, mas sempre termino no mesmo lugar.
A garagem.
É fácil entrar aqui. Só preciso me espremer um pouco e passar pelas grades do muro.
O ar aqui é quentinho. Tem várias lixeiras, e eu pulo dentro delas em busca de comida. Tem noites em que até camarão eu encontro.
Eu também gosto de observar estas criaturas tão estranhas: os humanos. Eles são tão diferentes entre si…
Na minha espécie, não: nós somos todos muito parecidos; só a cor de nossos pelos muda de um pro outro, e talvez um pouco o tamanho.
Já os humanos, esses há de todos os tipos.
Tem a fêmea que de tão magra eu até pensei em dividir comida com ela. Está sempre de roupas apertadas e com suor no rosto. Deve ter uma vida difícil…
Tem também o macho que é tão gordo que mal consegue sair da máquina que os humanos chamam de “carro”.
Tem ainda o que se empacota todo em uma roupa, o “terno” — como aprendi quando eu vivia em casa rica, antes de me jogarem na rua. O mesmo macho aparece alguns dias quase nu e com toalha nos ombros, entra no carro e só volta à noite.
E eles não são diferentes só na aparência. O jeito como se comportam também muda tanto de um pro outro.

Um macho e uma fêmea que andam juntos, por exemplo. Algumas noites, eles descem do carro aos sorrisos e abraços, prontos a se acasalar. Noutras, descem sem olhar um pro outro, como se prestes a brigar.
Uma outra fêmea, jovem, sai duas ou três vezes por semana, à noite. Sempre vestida em roupas tão curtas que parece ter esquecido uma peça em casa. Quando entra no carro, é com um sorriso no rosto. Quando desce, na volta, é com um olhar de tristeza.
(Na minha espécie, o acasalamento é tão mais fácil…)
O mais interessante dentre os humanos é o que desce à garagem, toda noite, para o mais estranho ritual que já vi entre eles.
Ele coloca à frente dele uma estrutura de madeira. Sobre ela, põe uma espécie de caderno. De uma caixa, ele tira uma varinha e um instrumento de madeira com cordas.
Aí, ele começa. Olhos no caderno, ele toca as cordas com a varinha. Um som percorre toda a garagem. Um som que me conforta, que me coloca em um transe que poucos de minha espécie algum dia irão vivenciar.
Uma noite, ao me ver perto, ele parou com a varinha e, sorrindo, me disse:
— Eu e você temos que nos refugiar na garagem, amiguinho. Pra não incomodarmos os outros.
Que estranhos os humanos, que consideram incômodo o som que reconforta a alma!
Muito boa essa perspectiva sobre os “Estranhos Humanos”.
Também achei muito interessante a ideia por trás dessa discussão acerca da ameaça aos artistas.
Abraço
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